Na comunidade quilombola de Mata Cavalo, em Nossa Senhora do Livramento (MT), a relação com a banana é tão forte que ela deixa de ser um mero alimento. Ela é a cultura de um povo, é o próprio quilombo. Estão espalhadas pelos mais de 40 quintais de sistemas tradicionais de cultivo da comunidade e cercadas por uma mata exuberante dos biomas Pantanal e Cerrado. Tem bananal que chega a ter mais de 4 mil pés. Um horizonte a se perder de vista. A agricultura no lugar é ancestral, que existe e resiste ao longo dos tempos, gerando assim, espécies únicas e aprimoradas de mudas e sementes, conhecidas como crioulas.
“Esse tipo de plantação eu aprendi com o meu pai, que aprendeu com o meu avô, que aprendeu como o meu tataravô. A gente cresce sabendo que é assim que tem que fazer”, diz Oildo Ferreira da Silva, de 43 anos. Ele é uma das lideranças quilombolas da comunidade Mata Cavalo, que fica distante a 50 quilômetros da capital de Mato Grosso, Cuiabá.
Da banana colhida, parte vai para o alimento da comunidade, que conta com mais de 160 famílias; e a outra serve como geração de renda. De produto in natura, ela se transforma em doce de rapadura, doce cristalizado e na réstia de banana – que faz um tremendo sucesso durante as festas na comunidade e no comércio da região. A réstia são balinhas envolvidas e trançadas em folhas de bananeira. Além de muito saborosas, elas simbolizam o trabalho sustentável da comunidade e sua relação intensa com a banana. A fruta também se transforma nas crocantes bananas chips, embaladas em saquinhos: “Êpa! Chips não! A nossa, vamos chamar de banana fatiada. Esse nome aí [chips] a gente não reconhece”, destaca Oildo, ao se queixar do estrangeirismo.
Fábrica de beneficiamento
A banana fatiada de Oildo, na verdade, representa um pensamento coletivo dos quilombolas de Mato Cavalo, de levar seus produtos para além dos balcões dos bares e pequenas mercearias de Nossa Senhora do Livramento e cidades do entorno. Um objetivo que fica cada vez mais próximo, a partir da chegada dos equipamentos de beneficiamento, que irão possibilitar a produção da banana fatiada – e de tantos outros produtos quilombolas – de forma escalonada.
“Rapaz, quando tudo estiver funcionando, vai ser só jogar a banana na máquina que ela vai sair toda fatiada. Se atualmente a gente leva de três a quatro dias para fazer mil saquinhos de banana, com os equipamentos vamos fazer essa mesma quantidade em um dia!”, comemora Oildo.
E todos os equipamentos já estão na comunidade, acomodados no local onde será a fábrica de beneficiamento comunitário. Além do cortador elétrico, há a máquina seladora, o liquidificador industrial, o tacho, a despolpadeira, o forno elétrico, a panificadora e a fritadeira, todos financiados pelo Programa REM Mato Grosso (do inglês, REDD para Pioneiros), a partir do projeto Muxirum Quilombola, da Associação da Comunidade Negra Rural Quilombo Ribeirão da Mutuca (Acorquirim).
“Nós também produzimos pão e, em breve, iremos trabalhar com a farinha de bocaiúva e o óleo de babaçu, que é muito procurado por empresas de fora do estado e até mesmo de fora do país. O bom nisso tudo é que os equipamentos também servirão para processar e beneficiar essas outras culturas produzidas pela gente, afirma Wilson Ferreira, o irmão de Oildo, e membro da Acorquirim.
Para que a fábrica esteja em pleno funcionamento só falta a energia elétrica. Situação que está sendo negociada com a Energisa – empresa que faz a distribuição de energia no estado. “Se tudo der certo, a fábrica começa a funcionar ainda neste ano”, reforça Laura Ferreira, irmã de Oildo e Wilson, e coordenadora do projeto Muxirum Quilombola.
Diversidade
A banana pode ser o carro-chefe, mas na comunidade Mata Cavalo tem de tudo um pouco. Basta caminhar pela comunidade e reparar que as roças nos quintais das casas, feitas a partir do Muxirum – ritual coletivo de plantio dos quilombolas – estão repletas de milho, arroz, mandioca, abóbora, cará, quiabo, maxixe, mamão, limão, poncã e cana de açúcar. Além dos quintais produtivos, os barus, pequis e as exuberantes palmeiras de babaçu completam a paisagem da comunidade de Mata Cavalo, indicando também que há um grande potencial para o extrativismo sustentável envolvendo esses produtos da sociobiodiversidade.
Tais fatores chamaram a atenção de Marcos Balbino, ao analisar a viabilidade do projeto Muxirum, que foi apresentado ao REM MT pela associação Arcorquirim. Balbino é o coordenador do Subprograma Agricultura Familiar de Povos e Comunidades Tradicionais (AFPCTs) do REM MT, que atualmente financia a iniciativa dos quilombolas de Mata Cavalo.
“Me emociono ao falar desse projeto, porque acredito que ele é um dos mais completos da primeira chamada. Em seus objetivos gerais e específicos, ele prevê a força coletiva da comunidade, a experiência dos mais velhos, com a vitalidade da juventude, o protagonismo das mulheres, o manejo florestal em harmonia com a natureza, bem como o fortalecimento econômico da comunidade, a partir da comercialização das diferentes culturas que vêm dos quintais florestais desses agricultores e agricultoras. E nesse bojo, o projeto também pretende desenvolver as cadeias de valor do extrativismo”, destaca.
Manejo sustentável ancestral
Quem também visitou Mata Cavalo foi o engenheiro florestal Leonardo Vivaldini, da Secretaria de Estado e Agricultura Familiar (SEAF). Ao observar um plantio de milho todo cercado por mata nativa, ele chamou atenção para o tipo de manejo florestal que é feito no lugar: uma prática ancestral, fundamental para manter a floresta em pé.
“Penso, que além de apoiar às tecnologias novas, que ajudam a potencializar a produção e o comércio das roças comunitárias de Mata Cavalo, o apoio do REM MT, por meio do Muxirum, também serve para manter e fortalecer a agricultura tradicional ancestral dos quilombolas, que une árvores nativas, espécies agrícolas e sistema de rotação dessas áreas da agrobiodiversidade. É um cultivo que dialoga e respeita o tempo da natureza. Que permite que a terra descanse por quase 10 anos, antes de receber os plantios. Essa lógica de descanso faz com que o solo recupere todos os seus nutrientes de maneira natural. E, dessa maneira, eles vão fazendo esse revezamento, plantando em uma área e conservando a outra”, destaca.
Projeto amplo
Na verdade, Mata Cavalo é apenas uma das comunidades visadas pelo Muxirum, que, ao todo, pretende beneficiar mais de 500 famílias quilombolas da Baixada Cuiabana (Livramento e Poconé), do Médio-norte (Barra do Bugres) e Sudoeste do Estado (Cáceres).
“O objetivo maior do Muxirum é o fortalecimento das atividades econômicas, produtivas e comerciais dos produtos quilombolas, a partir do manejo sustentável da biodiversidade e a valorização social e cultural das comunidades inseridas no projeto”, destaca Laura Ferreira, a coordenadora do Muxirum.
Ao todo, o Programa REM MT investe no Muxirum R$ 1,5 milhão, para colocar as diferentes atividades do projeto em prática. Os recursos são administrados pelo Fundo Brasileiro para Biodiversidade (Funbio), que é o gestor financeiro do REM MT.
O projeto faz parte da Chamada 03.2020 de editais da AFPCTs, que atualmente financia 22 projetos que atuam nos três biomas de Mato Grosso (Amazônia, Cerrado e Pantanal), e que são focados na preservação ambiental, transformação social e geração de renda das famílias.
Por Marcio Camilo