O que o Dia da Consciência Negra (20 de novembro) tem a ver com a preservação ambiental? Tudo! Pois, quando se trata do campo, os saberes ancestrais e as vivências do povo negro repercutem até os dias de hoje nas comunidades tradicionais e na agricultura familiar, que produz a comida que vai à mesa de milhões de brasileiros. Essa influência é especialmente observada na produção agrícola, que é toda baseada em práticas agroecológicas de sustentabilidade e preservação das florestas.
Visualizando a importância de reforçar essas práticas sustentáveis, em Mato Grosso, o Programa REM MT (do inglês, REDD para Pioneiros) apoia atualmente três importantes projetos voltados para fortalecer a autonomia financeira e alimentar de comunidades quilombolas e de produtores negros e negras da agricultura familiar.
Do Campo à Mesa
Um desses projetos abrange 10 comunidades em nove municípios da Baixada Cuiabana. Trata-se do projeto “Do Campo À Mesa: fortalecimento de cadeias produtivas sustentáveis em redes de cooperação solidária”, que tem como proponente a Fundação UNISELVA, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). A maioria dos agricultores inseridos no projeto é preta ou parda. Mas existem, em especial, duas comunidades essencialmente quilombolas, que são: a Serragem e a Imbê.
A Comunidade Serragem fica em Nossa Senhora do Livramento, a cerca de 100 quilômetros de Cuiabá. O local foi fundado na década de 1940 e até hoje busca manter um modo de vida, baseado numa agricultura que trabalha em harmonia com a natureza. Atualmente, 16 famílias residem em Serragem.
Já a Imbê fica no Pantanal, sendo composta por 15 famílias. Por lá, o grande trunfo foi a consolidação da agroindústria para processamento dos derivados da cana de açúcar, de onde sai o melado, o açúcar mascavo e a rapadura.
Atividades do Campo à Mesa com famílias de agricultores da Baixada Cuiabá. Crédito: Do Campo à Mesa
O coordenador do projeto do Campo à Mesa, Henderson Gonçalves, ressalta que o objetivo é oferecer condições para que essas famílias façam uma transição da agricultura convencional para os Sistemas Agroflorestais (SAFs), como forma de reforçar ainda mais suas práticas milenares de preservação ambiental.
Ele explica que o projeto possui quatro eixos: a organização social das famílias, a transição para os SAFs, o fomento para a agroindústria e, por fim, o suporte para a comercialização desses produtos até chegar às casas das famílias na cidade. “É por isso que a gente fala: Do Campo à Mesa”.
Ele acredita que, por mais que o projeto não tenha sido pensado com foco direto nas populações negras, as ações “Do Campo à Mesa” são transversais à questão racial.
“Isso porque, se você pegar a estratificação da nossa sociedade, os mais pobres, que diariamente enfrentam dificuldades financeiras e problemas de segurança alimentar são pessoas pretas e pardas, em sua grande maioria. E o nosso projeto atende justamente esse perfil. Então, por mais que o foco não seja a questão racial, o nosso projeto acaba incidindo nessa área e ajudando as comunidades negras do campo a fortaleceram suas produções de maneira sustentável, sem derrubar a floresta”, enfatiza.
Conexsus
Outro projeto que fortalece as práticas ancestrais do povo negro no campo é o da Conexsus: “Ampliando oportunidades de mercado para negócios comunitários da agricultura familiar, povos e comunidades tradicionais em Mato Grosso”, que tem como preponente o Instituto Conexões Sustentáveis.
Até o momento, o Conexsus já mapeou quatro comunidades quilombolas que estão localizadas nos biomas Amazônia e Cerrado. O objetivo principal do projeto é facilitar o acesso ao crédito a essas comunidades, além de criar novos arranjos financeiros e ampliar a oportunidade de negócios, para que essas famílias possam vender seus produtos em escala regional e nacional.
Feira de produtos orgânicos apoiada pelo projeto da Conexsus. Crédito: Conexsus
“O público-alvo prioritário da Conexsus é formado por agricultores familiares, comunidades tradicionais extrativistas, povos indígenas e quilombolas, que organizam sua produção agrícola em cooperativas ou associações e vivem em áreas rurais e/ou florestais, localizados em assentamentos da reforma agrária, unidades de conservação, Terras Indígenas ou Territórios Quilombolas”, detalha trecho do projeto da Conexsus, aprovado no edital do Subprograma Agricultura Familiar de Povos e Comunidades Tradicionais (AFPTCs) do Programa REM MT.
Muxirum Quilombola
Já esse projeto apoiado pelo REM MT é eminentemente quilombola, vindo da Comunidade de Mata Cavalo, em Nossa Senhora do Livramento. Lá, as famílias utilizam práticas ancestrais que ajudam a preservar o bioma Cerrado, por meio de um sistema de rodízio de roçados.
Laura Ferreira, coordenadora do Muxirum, explica que o sistema consiste em recuperar a mata por um período de três a cinco anos. Enquanto isso, a plantação ocorre em outro espaço.
Prática de agricultura milenar sustentável é passada de geração em geração no território quilombola de Mata Cavalo. Crédito: Laura Ferreira
“Quando o solo desse espaço começa a enfraquecer, a gente muda o plantio para área recuperada. Assim, o processo de rodízio é feito nesses locais, sem que haja necessidade de expandirmos a agricultura para novas áreas, o que pode gerar muita degradação”, detalha Laura.
Ela ressalta que o Muxirum, o sistema de roçado, são práticas milenares, trazidas para o Brasil pelos africanos que foram escravizados pela coroa portuguesa. “É uma tradição que, mesmo diante de tantas violências ao povo negro, resiste ao tempo, sendo repassada de geração em geração”, destaca Laura.
No Muxirum, explica Laura, a agricultura é entendida como uma festa e toda comunidade se une para fazer o plantio e a colheita. “Nada é feito sem consultar a mãe natureza. É para ela que pedimos licença para iniciarmos o roçado. Para nós, uma árvore significa vida”, acrescenta Laura.
Foi a própria comunidade que inscreveu o projeto no edital de chamadas do Programa REM MT, sendo contemplada no ano passado. E até o final das atividades, o Muxirum Quilombola deve receber investimentos de R$ 1, 5 milhão, que irão beneficiar a prática da agricultura familiar de cerca de 500 famílias quilombolas, divididas em 17 comunidades localizadas em Poconé, Cáceres, Barra do Garças e Nossa Senhora do Livramento.
Por Marcio Camilo