Ainda que trabalhem de sol a sol, as mulheres que fazem parte das cadeias de valor da sociobiodiversidade são incluídas ou excluídas de muitas atividades, justamente, por conta do gênero. Por isso, para entender como funciona o papel das mulheres dentro das cadeias de valor, a Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH, em conjunto com o Programa REM MT, está promovendo uma pesquisa inédita em Mato Grosso.
A análise está sendo realizada a partir de um diagnóstico da realidade local, que teve sua primeira coleta de dados primários realizada durante os dias 4 ao 12 de maio. As oficinas e entrevistas, em conjunto com a pesquisa de dados secundários, aconteceram em projetos atendidos pelo Subprograma Agricultura Familiar, Povos e Comunidades Tradicionais (AFPCTs), nos municípios de Alta Floresta, Nossa Senhora do Livramento e Terra Nova do Norte.
De acordo com a consultora Nadiella Monteiro, que está desenvolvendo a pesquisa, para trabalhar com as cadeias do açaí, cumbaru, pequi, borracha, castanha, babaçu, sementes florestais e leite, é necessário lidar com diversas etapas, desde a colheita até a separação dos produtos, por exemplo.
Nadiella Monteiro foi contratada para desenvolver a análise de gênero (Foto: Arquivo pessoal)
Divisão do Trabalho
E a divisão do trabalho para o desenvolvimento dessas etapas foi dividida entre homens e mulheres. Porém, o que ocorre é que as mulheres acabam sendo sobrecarregadas, tendo que lidar ainda com os cuidados domésticos quando retornam aos lares.
“O que a gente viu, e isso foi uma construção em grupo, é que as mulheres estão trabalhando de igual pra igual na cadeia produtiva, e depois quando chegam em casa, elas tem que trabalhar um pouco mais, tem uma sobrecarga”, observa Nadiella.
Por meio das oficinas, o objetivo é compreender quais atividades são exercidas por homens e mulheres, para trazer visibilidade, valorização, dignidade, respeito e renda ao trabalho feminino dentro da cadeia de valor, explica a consultora da GIZ, Joanna Ramos.
“É tentar garantir, deixar em maior visibilidade, todas as tarefas que a mulher exerce dentro dessa cadeia. Por isso, a importância de medir todos os trabalhos não remunerados que ela faz e todo o trabalho ativo que ela tem na cadeia, na produção, no manejo, em todos os elos dessas cadeias da sociobiodiversidade”, conta Joanna.
Joanna Ramos faz parte da Cooperação Técnica Alemã GIZ
Nestas primeiras oficinas, foram visitados empreendimentos das cadeias do pequi, açaí, leite, cumbaru, castanha do Brasil e sementes florestais, e entrevistadas diversas lideranças locais.
Entendendo os papéis de gênero nas oficinas
Durante as oficinas, Nadiella Monteiro relata que pelo diálogo entre os participantes – homens, mulheres, jovens, idosos e todo mundo que participa da cadeia de valor –, ela notou as diferenças que existem nos papéis de gênero.
Um exemplo é a participação feminina em atividades desenvolvidas na comunidade, que muitas vezes sofrem restrições dos homens.
“Muitas vezes uma mulher não pode participar de um curso, um treinamento ou uma reunião que seja, porque é o horário em que ela vai levar o filho na escola, vai buscar, ou tem crianças que não tem com quem deixar. Então, ela fica insegura, intimidada e constrangida de levar”, comenta Nadiella.
Outro caso é na própria distribuição das tarefas. Nas sementes florestais, por exemplo, cabe aos homens coletar as sementes, pois as mulheres têm medo de subir nas árvores ou passar dias a fio acampadas no meio do mato. Para elas, foi atribuída a tarefa de limpar as sementes.
O cumbaru faz parte das cadeias de valor (Foto: Nadiella Monteiro)
“As mulheres são preferencialmente quem faz esse trabalho, um deles disse: Ah, é coisa de casa, então os homens chegam com a coleta e as mulheres que limpam. Também ouvi sobre uma super qualidade das sementes que são processadas e limpas por mulheres, de ter uma qualidade maior, ouvi duas pessoas relatando que a semente chega brilhando”, comenta a consultora.
Os trabalhos que envolvem mais força também são atribuídos aos homens, enquanto os que exigem mais destreza, higiene e detalhe são responsabilidades delas.
“A mulher tem um cuidado maior em trabalhar com alimento, tem mais higiene e detalhe. Por outro lado, a gente tem uma participação mais fácil dos homens nos trabalhos mais pesados: ir pro castanhal, ficar lá acampado meses, coletando ouriço de castanha, quebrando ouriço da castanha e carregando nas costas. É um trabalho que normalmente os homens fazem com mais facilidade. Trabalho do manejo do gado, trabalho de formação de pastagens, então tem que fazer algumas tarefas que os homens fazem melhor e com mais desenvoltura”, detalha Nadiella.
Valorização
Ao entender essas diferenças, é possível construir estratégias para que o trabalho das mulheres seja valorizado, também deixando de sobrecarregá-las.
Oficina de Análise de Gênero na Cadeia do Cumbaru – Distrito Faval(Foto: Joanna Ramos)
“Entender essas diferenças permite que a gente atue com uma proposta de melhoramento, de trazer mais qualidade, de adaptar uma ferramenta e de valorizar. Porque a gente sabe que quem está fazendo aquilo é um grupo que tem uma característica definida e a gente trabalha pra potencializar o trabalho da comunidade”, reflete Nadiella.
Potencial de transformação
Ao observar os participantes, Nadiella conta que as discussões já reverberam um pensamento crítico acerca dos papéis de gênero, além do próprio reconhecimento do trabalho feminino.
Ela brinca que um senhor chegou a dizer que “se sentia envergonhado como homem”, após ouvir sobre todas as funções que as mulheres precisam exercer – desde o cuidado no trabalho até o cuidado com a casa.
Por meio das cartilhas e oficinas realizadas, os produtores também se sensibilizaram com as questões trazidas.
“Há um potencial de transformação na reflexão, e eu vi isso nas pessoas com quem eu conversei. Falar sobre esse assunto já é pensar, trazer consciência e promover uma reflexão sobre os papéis”, garante a consultora.
Comunidade participando da oficina (Foto: Joanna Ramos)
Diálogo
Mapear, entender e refletir: o Ponto focal no Subprograma de Agricultura Familiar, Povos e Comunidades Tradicionais, Leonardo Vivaldini dos Santos, comenta que a pesquisa vai ampliar o diálogo do subprograma com os beneficiários, trazendo ainda mais rendimento para a comunidade.
“Essa amostra constrói essa visão em conjunto com eles, e acho que gera muitos aprendizados, do ponto de vista de como a mulher às vezes pode ‘não estar trabalhando formalmente’, mas ela está de fato dentro da cadeia produtiva em muitas atividades que vão proporcionar o trabalho coletivo, uma vez que a gente está falando da agricultura familiar, pegando essa essência da questão familiar”.
Resultado
De acordo com a GIZ, o resultado final da pesquisa será divulgado até o final de julho de 2023.